Atos

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terça-feira, 25 de setembro de 2012

Cor e descores


Tenho quase uma necessidade de tomar nota da vida, aqui e acolá. Escrever para mim um diário ocasional, como este de que me aproprio vez ou outra para o mister de confessionário.

Entre um músculo e outro que se contrai, respiro. Dentro a sensação de ter deixado um turbilhão, uma vida de outrem para viver a minha. Volteio a casa, sento-me à cozinha, vejo a pia, gota a gota, escorrendo uma vida. Sei que não é a minha. Aperto a pia, aperta-me uma veia bem fundo. Desço a mão à torneira, e estreito a sua fragilidade de gotejar vidas.

Pausam-me os olhos sobre alguma memória. Não a distingo, e vivo bem por alto.

Queria tanto dizer às pessoas que amo como a vida tem acontecido! Ninguém jamais soube que o meu mapa astral é outro, que tenho errado de ascendente... Além disso, eu descobri que o amarelo tem outros tons. Que a chuva quando cai lá fora me molha um pouco. Eu descobri que posso reescrever-me. Que mais do que nunca eu tenho me reescrito. Eu descobri que é preciso ler Paul Valéry. E que há coisas que eu só entendo por uma criança. Além de tudo, hoje eu sei, como Darcy disse, que às vezes é preciso mudar para permanecer o mesmo.

sábado, 25 de agosto de 2012

1. Benditos Poetas! Paulo Leminski: O polaco mulato ou o louco em trânsito




Benditos poetas!

Hoje, inauguro oficialmente uma descuidada série de apresentações que buscarão percorrer grandes expressões poéticas na língua portuguesa, com pequenas introduções críticas nada enciclopédicas sobre cada autor. Trata-se de um projeto que desde um tempo cultivo. E, começo hoje, num ponto não tão comum como imaginava a princípio. No que restará este capítulo como uma pequena homenagem a um dos meus poetas prediletos, que ontem estaria completando 68 anos. Falo do polaco mulato Paulo Leminski.

Leminski é um desses nomes indecifráveis à crítica séria. Poeta itinerante, que trafega com soberba criatividade em todos os gêneros, seja na poesia concretista dos anos 70, nos versos mais amadurecidos da década seguinte, seja na prosa ousada de Catatau; Paulo Leminski é uma voz única na poesia brasileira, admirador de Maiakovski e Ezra Pound; grande disseminador do Haicai no Brasil; tradutor de Joyce, Beckett, Petrônio, John Fante e John Lennon; além de compositor; ensaísta; jornalista; e publicitário. Às vezes, uma coisa por vez, às vezes, tudo a um só tempo.

Se os anos 70 no Brasil foram anos de chumbo, foram anos também da Poesia de Chumbo de Paulo Leminski, de versos que seguiam a princípio os movimentos poéticos e estéticos daquela década, mas que ultrapassa estas dimensões estéticas. Poeta marginal?

“Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.

Marginal, escrever na entrelinha,
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha.”

Cronologicamente é inevitável fazer essa associação com a “poesia marginal”, vez que teve por contemporâneos nomes como Ana Cristina César, Francisco Alvim, Torquato Neto e Chacal. Mas numa rápida leitura notamos que esta associação parece um pouco distante de significar alguma coisa.

Leminski conseguia destilar, com um humor inigualável, golpes certeiros de um judoca, em versos que ora meditam ora apedrejam. Sua lógica ou a falta dela consegue desconcertar o leitor. A poesia de Leminski é urgente, mesmo quando picha no muro “sentado não tem sentido”, aborrecido das normas e necessidades do escritório. E consegue transitar por meios extremos, do marketing publicitário aos haicais de Bashô, do teatro de Beckett à prosa de Petrônio, das comparações despojadas da escrita ao futebol até à disciplina singular do judô, em que era faixa preta.

Talvez, Leminski seja a realização última do modernismo brasileiro. A lição de que o verso é livre, e faça dele o que quiser. Faça soneto, faça haicai, faça concreto, faça verso livre e branco e colorido ou faça o silêncio da lápide. Com tudo se pode erguer a argamassa do poeta.

Em Leminski não vemos propriamente e tão somente aquela linguagem sintética, concisa, em que só caiba a delicadeza da infância que perdura após o acondicionamento a que nos damos dessa vida urbana, pós-industrial, pós-concretista, e ainda moderna. Não. Leminski não é dessa delicadeza, mas nele também cabe a delicadeza do espanto.

Seguem, abaixo, alguns de seus versos, selecionados de sua caleidoscópica produção poética:


“Dois loucos no bairro

Um passa os dias
chutando postes para ver se acendem

o outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco

todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também.”


“jardim da minha amiga
todo mundo feliz
até a formiga”


“ALÉM ALMA (UMA GRAMA DEPOIS)

Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar.
Já no peito trago em bronze:
NÃO TEM VAGA NEM LUGAR.
Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
Mais me parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
Pra que é que eu quero
quem chora, se estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?”


“Sorte no jogo
azar no amor
de que me serve
sorte no amor
se o amor é um jogo
e o jogo não é o meu forte,
meu amor?”


“nadando num mar de gente
deixei lá atrás
meu passo à frente”




Para maiores alumbramentos:
- Pequeno documentário de Cristiana Miranda, “Para limpar lágrimas”

- Documentário para TV realizado por Werner Schumann, “Ervilha da Fantasia”

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Poema de Al Berto





"Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu… como seriam felizes as mulheres
à beira-mar debruçadas para luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos… sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta… dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca do mar ao fundo da rua
assim envelheci… acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no
coração, mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite a felicidade"

Al Berto

sábado, 11 de agosto de 2012

Annita e sua poesia de muitas vozes

A postagem hoje vem a mostrar uma das musas que descobri nas minhas recentes leituras poéticas, dona de uma poesia fabulosa. Escritora contemporânea e de uma linguagem contemporânea, que me faz revisitar uma das citações de Apollinaire, que afirmava todas as formas serem boas desde que fossem vivas e falassem com a alma. A poesia de Annita Costa Malufe fala com a alma, num discurso íntimo e de grande propriedade estética. Vozes entrecortadas, memórias, flashes e, acima de tudo, uma grande subjetividade, compõem os seus versos. Versos que por vezes crescem na voz, às vezes marejam como o mar, trabalhando ideias num plano de fundo que vão e voltam na leitura. Carece uma leitura atenta para apreendê-la, carece lê-la com os olhos da alma.

Segue, pois, um de seus poemas que compõe o livro "Como se caísse devagar":

“seu corpo estava torcido ao revés
e havia uma dor
uma chuva interminável
o dia todo passado ao relento e
ele então andaria mais algumas quadras
para se abrigar algumas quadras a mais
tendo aquela mulher na cabeça
eu não posso te esquecer eu preciso
te esquecer como quem esquece um guarda-chuva
no táxi como quem esquece
a letra de uma música que ouvia todos os dias
eu não posso te esquecer enquanto o dia não abre
andar mais umas quadras um toldo para se abrigar
isto me faz lembrar de algumas tardes
de cabelo encharcado pés encharcados
sem poder voltar para casa
esperar a chuva passar o sapato secar
isto me faz lembrar me faz esquecer
algumas tardes vazias procurando modos de
ocupar o tempo modos de escorrer o tempo
até o próximo dia a próxima luz
fazer esquecer pode passar por isto
você abre a cortina e de início não encontra nada
você coloca as mãos para fora e as mãos
buscam rapidamente o casaco
ela se lembrava de esperar mais um pouco
ocupar as tardes vazias
isto soava uma coisa de juventude
tardes vazias procurar o que fazer
aguardar a chuva passar os sapatos secarem
quem estaria vivendo isto hoje ele ela
o corpo ao revés as mãos frias sob o casaco
o dorso se desviando levemente
tardes vazias a chuva interminável
se abrigue neste toldo posso
te fazer dormir
até o próximo dia a próxima luz
posso te fazer dormir”

Annita Costa Malufe

sábado, 21 de julho de 2012

lugar II



Há sempre uma noite terrível para quem se despede
do esquecimento. Para quem sai,
ainda louco de sono, do meio
do silêncio. Uma noite
ingénua para quem canta.
Deslocada e abandonada noite onde o fogo se instalou
que varre as pedras da cabeça.
Que mexe na língua a cinza desprendida.

E alguém me pede: canta.
Alguém diz, tocando-me com seu livre delírio:
canta até te mudares em cão azul,
ou estrela electrocutada, ou em homem
nocturno. Eu penso
também que cantaria para além das portas até
raízes de chuva onde peixes
cor de vinho se alimentam
de raios, seixos límpidos.
Até à manhã orçando
pedúnculos e gotas ou teias que balançam
contra o hálito.
Até à noite que retumba sobre as pedreiras.
Canta - dizem em mim - até ficares
como um dia órfão contornado
por todos os estremecimentos.
E eu cantarei transformando-me em campo
de cinza transtornada.
Em dedicatória sangrenta.

Há em cada instante uma noite sacrificada
ao pavor e à alegria.
Embatente com suas morosas trevas.
Desde o princípio, uma onda que se abre
no corpo, degraus e degraus de uma onda.
E alaga as mãos que brilham e brilham.
Digo que amaria o interior da minha canção,
seus tubos de som quente e soturno.
Há uma roda de dedos no ar.
A língua flamejante.
Noite, uma inextinguível
inexprimível
noite. Uma noite máxima pelo pensamento.
Pela voz entre as águas tão verdes do sono.
Antiguidade que se transfigura, ladeada
por gestos ocupados no lume.

Pedem tanto a quem ama: pedem
o amor. Ainda pedem
a solidão e a loucura.
Dizem: dá-nos a tua canção que sai da sombra fria.
E eles querem dizer: tu darás a tua existência
ardida, a pura mortalidade.
Às mulheres amadas darei as pedras voantes,
uma a uma, os pára-
-raios abertíssimos da voz.
As raízes afogadas do nascimento. Darei o sono
onde um copo fala
fusiforme
batido pelos dedos. Pedem tudo aquilo em que respiro.
Dá-nos tua ardente e sombria transformação.
E eu darei cada uma das minhas semanas transparentes,
lentamente uma sobre a outra.
Quando se esclarecem as portas que rodam
para o lugar da noite tremendamente
clara. Noite de uma voz
humana. De uma acumulação
atrasada e sufocante.
Há sempre sempre uma ilusão abismada
numa noite, numa vida. Uma ilusão sobre o sono debaixo
do cruzamento do fogo.
Prodígio para as vozes de uma vida repentina.

E se aquele que ama dorme, as mulheres que ele ama
sentam-se e dizem:
ama-nos. E ele ama-as.
Desaperta uma veia, começa a delirar, vê
dentro de água os grandes pássaros e o céu habitado
pela vida quimérica das pedras.
Vê que os jasmins gritam nos galhos das chamas.
Ele arranca os dedos armados pelo fogo
e oferece-os à noite fabulosa.
Ilumina de tantos dedos
a cândida variedade das mulheres amadas.
E se ele acorda, então dizem-lhe
que durma e sonhe.
E ele morre e passa de um dia para outro.
Inspira os dias, leva os dias
para o meio da eternidade, e Deus ajuda
a amarga beleza desses dias.
Até que Deus é destruído pelo extremo exercício
da beleza.

Porque não haverá paz para aquele que ama.
Seu ofício é incendiar povoações, roubar
e matar,
e alegrar o mundo, e aterrorizar,
e queimar os lugares reticentes deste mundo.
Deve apagar todas as luzes da terra e, no meio
da noite aparecente,
votar a vida à interna fonte dos povos.
Deve instaurar o corpo e subi-lo,
lanço a lanço,
cantando leve e profundo.
Com as feridas.
Com todas as flores hipnotizadas.
Deve ser aéreo e implacável.
Sobre o sono envolvida pelas gotas
abaladas, no meio de espinhos, arrastando as primitivas
pedras. Sobre o interior

da respiração com sua massa
de apagadas estrelas. Noite alargada
e terrível terrível noite para uma voz
se libertar. Para uma voz dura,
uma voz somente. Uma vida expansiva e refluída.

Se pedem: canta, ele deve transformar-se no som.
E se as mulheres colocam os dedos sobre
a sua boca e dizem que seja como um violino penetrante,
ele não deve ser como o maior violino.
Ele será o único único violino
Porque nele começará a música dos violinos gerais
e acabará a inovação cantada.
Porque aquele que ama nasce e morre.
Vive nele o fim espalhado da terra.





herberto helder
lugar (poema II)
poesia toda
assírio & alvim
1981

segunda-feira, 9 de julho de 2012

UMA PÁGINA EM BRANCO


Nota: Posto, hoje, um texto antigo, para relembrar minhas imprudências literárias. De lá para cá, a escrita minha mudou, assim como se modificaram a minha concepção e modo de composição de prosa, mas este texto ainda me traz uma lembrança feliz.
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Nem sempre o amor é provocado por aquilo que excita no peito de uma pessoa o vislumbramento de ver no peito de outra um vasto horizonte, nem sempre o amor é o desatino que soa nas bocas como o mais belo soneto. Amor nem sempre é fogo, embora possa arder um instante, esquentar nos braços os braços de outro ser distante e reaver a chama de um sonho arrebatado pelo correr dos anos. Amar é mais, simplesmente, escolher com os olhos fechados os lances de um jogo azar, quem vai lutar contigo, quem com contigo vai correr o céu e o mar. O afago de um beijo tem o mesmo sentido de uma carta de quem manda notícias de além-mar.
Frequentemente, quando olho às mulheres me sinto torpe, com um embaraço de quem se espraie, pelo solo, imundo; desloco a vista, a vida também, mas o olhar me consome, cedo a desejos tímidos de olhá-las mais um segundo, perpetuar um desejo tolo frente ao desespero de manter-me na mais pudica inércia, fingindo-me impenetrável a devaneios. Creia, sim, que talvez eu diga a verdade. Ainda isto dizendo, nada significaria, senão para algum psicólogo que pode querer emendar aqui uma outra leitura, vil, desconfortável, mas o caso, confesso que não me produz preocupação. Já tive muitos segredos, mas hoje os que me sobram são involuntários, então se façam de leitores, desde já, e poupem-me o tempo de outra vez ter de repetir o que aqui digo. Vou apresentar-me como um simulacro, e tirem de mim o que quiser.
A bem dizer, queria ter iniciado isto de outra forma, mais cronológica, organizada, explicativa, em que contasse minha vida inteira; mas a minha natureza não adere a isso. Também não me levo à prática de dividir as coisas em compêndios, catalogando informações marcadas, fichando páginas... portanto contentem-se a esta simples descrição, meio embaralhada e ainda confusa, mas sincera.

 “Nos lábios dela, posto, havia não sei o quê de um veneno afrodisíaco, cada mergulhar naquele corpo molhado das tardes de domingo me embebedava de um frenesi torpe, selvagem. Aqueles olhos de horizontes bem traçados me tiravam os lumes de meu desejo louco; não via... não via sequer de meu caminho um ladrilho, queria apenas me afogar; queria me perder naqueles dois laços que eram os seus braços. Hoje, cego como Ray Charles, com o coração tragado por aquela alma, caminho as tardes meio a parte de tudo; e com um sorriso largo estampado no rosto, alheio às constatações mundanas, vou erguendo castelos, conclamando nos versos uma paixão que queima sempre a quem ama. É com esse amor diluído pelas paredes que escrevo a partir de hoje a minha história.” (9/11/2009)

Escrevi isto há três semanas ou, dirá, aqui um amigo a outro, que o tempo já se adentrou nos anos. A carta era a um compadre de quem retive um gosto especial, um grande apreço. A carta, porém, não lhe enviei, é óbvio. Óbvio pelo conteúdo, e por também ser claramente notável que uma expressão assim de sentimento é meramente autoprotetiva, desencadeada por algum desequilíbrio da glândula tireóide. Sim, chego ao ponto mais baixo de confessar-me vítima de depressão, e postar tudo isto aqui prevendo um argumento a meu favor. Contudo, se isto a ti não explica tudo, pouco importará as linhas que se seguem; assim sendo, pare desde já a leitura para que te não aborreça nem me entedie o conto com estes teus olhos de prosa, pois aqui não há prosa, e é para ti, o outro, a quem escrevo o que aqui se sucede. Quanto à carta, materialmente falando, afirmo que assim me mantenho em parte, preso por dois meses aos velhos costumes, por carinhos dispendiosos, por uma antecipação ufanista de vaidades, por meras veleidades, pois se me desvendas, sabes que apenas posso ter inveja de não parecer tolo por qualquer motivo. Deste modo, nomeio isto, sim, por desespero, um desespero dilacerante de transformar o passado numa máquina de engenho gasta e sem graça, com roldanas velhas e já inertes trilhos. Para me afagar o peito, nem sequer cultuo mais manipansos como outrora, nem vacas sagradas, nem almas penadas, nem hierofanis ridículos. Só mais ridículo ainda sou eu, por ser ridículo sem ter um amor que me permita sê-lo. Amo o vazio, apenas... Amo por um desespero ardente aquilo que não há.
A vida é sempre um embaraço de egos; isto arrisco-me a dizer que apreendi com o passar dos anos. Como Drummond nos cochichou em versos, alguém ama alguém, que outro alguém ama, e que ama outro ser distinto, que no fim do conto e das contas, não ama ninguém. Na verdade, creio que este último apenas ama, não conhece um objeto definido em que postar o seu amor. No entanto, cedo a muito contragosto em dizer que é preciso amar egoisticamente alguém, ao menos uma vez. Bem, de fato, melhor que seja somente uma vez; pois antes, poupemo-nos do vício. Existe um amor univalente que nos condena ao marasmo mais profundo; mas se ao inverso nos amamos, pelos outros olhos somos eternamente condenados.
Sim, eternamente condenados... Resta saber quem nos condena. Raquel, por exemplo, deixou-me. Eu não a condeno, ela a mim, não sei... pois ainda me ama, e ainda me diz, que me busca atrás das páginas do caderno, atrás do meu caderno que a ela deixei. De mês em mês, recebo uma carta sua, em que sempre me diz, não sei o porquê – “não me procure, não me responda” –; embora saiba que por trás daquelas palavras se encontre um sentido diverso, no qual se entende o oposto do que me diz em verso, como se a carta me dissesse assim – “Se me esqueces, de ti não me esqueço, meu bem...”. Que eu a ame, é certo; mas hoje, a amo como a um amigo, num amor livre, sem algemas, sem compromissos. Um amor polivalente, como todos os amores deveriam ser, se não fossem livres para escolhê-los ser.
Contudo, eu não a engano; quando inesperadamente, minha voz esbarra com a dela ao telefone, ainda sou eu quem falo, com o amor que muito bem me resta sobre as prateleiras da biblioteca. O único fato que ela ignora é que já não a amo do mesmo modo que a amei um dia. E desses encontros ao acaso, há de se ressaltar que nenhum é de minha obra.
Apenas sei que, hoje, ao sentar por sobre os dias de domingo, vejo meu amor disperso, como fosse um mar a singrar por sobre si, vejo na alçada da grande baía como ele corre como um menino. No fundo, ele me reinventa os dias. Amar distraído é a coisa que mais me rende alegria. Contudo, não hei de dizer que as noites minhas são mais frias, ainda que sejam. Apenas, mais minhas hão de ser as horas que passam ao correr de meus dias.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Pessoa e a sua narrativa poética


Eu nunca imaginei que eu usaria esses modos para me expressar, mas devo dizer... a prosa de Fernando Pessoa é porrada, é uma pancada no meio do estômago. Ando me espreitando pela prosa de Pessoa nos últimos meses, inicialmente pelo mistério de Bernardo Soares, semi-heterônimo em seu “Livro do Desassossego”, e agora com o “Teatro d’êxtase”, que reúne algumas de suas peças, e a quem não conhece, recomendo que não deixe de passar os olhos por essas obras. Há duas caraterísticas marcantes em sua prosa e que me chamam a atenção, a primeira é a fuga para a metafísica muito presente em seus discursos e a segunda são os arroubos de lirismo. A sua prosa não deixa de ser muito poética. Para quem busca uma leitura intimista é um prato cheio.

Quero em outro momento falar do “Livro do Desassossego”, mas deixo abaixo apenas um trecho do “Diálogo no jardim do palácio”, um dos textos que compõem o “Teatro do Êxtase”:

“(...) A. Às vezes, quando penso muito adentro, sabe-me a que corpo e alma são uma cousa só. . . Parece-me então que realmente vemos as cousas de dois lados, que a alma das cousas é aquilo que nos parece que não vemos delas. . . Não, não é isto que eu te quero dizer. . . Vê, não sei pensar o meu pensamento!
B. Sim, compreendo o que não disseste. Mas o corpo não existe, talvez: é a alma vista pela [ ] de si-própria.
A. Não. Não é assim. Não é assim. Mas eu não sei como é.
B. Vamos jogar, se quiseres, um jogo novo. Joguemos a que somos um só. Talvez Deus nos ache graça e nos perdoe ter-nos criado. . . Senta-te aqui, defronte de mim e chegada a mim. Encosta os teus joelhos aos meus joelhos e toma as minhas mãos nas tuas. . . Assim. . . Agora fecha os olhos. Fecha-os bem e pensa. . . e pensa. . . Em que deverás pensar? Não, não penses em nada. Trata de não pensar em nada, de não querer sentir, de não saber que ouves ou que podes ver, ou que podes sentir as mãos, se quiseres pensar que elas existem. . .Assim, amor. . . Não movas nem o corpo nem a alma. (...)”

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Mon souvenir

Je t'ai pris entre mes doigts. Tu as été mon souvenir.

A nada se equivale a sensação de ser, de sentir as alegrias mínimas, as dores mínimas, de ser absolutamente humano.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Verso e música


Minha ideia continua a mesma. A arte é uma forma de resgatar a integridade do homem. Um homem não pode ser completo, ser por inteiro, sem a presença da arte.

A palavra, a música, o gesto, a cor, mais do que nunca, têm composto minhas semanas. Tomei coragem para enredar o meu romance, de que me esquivei por muito tempo para escrevê-lo sob aquele típico argumento de que me faltava preparo, tempo, experiência... quando nada disso tem profunda relevância. Hoje, ainda me falta preparo, tempo e experiência, só me sobra a pretensão recalcada e a modéstia falsa de quem recebe um elogio. Mas nem por isso deixo de escrever.

Diário, meu querido Diário, tenho tanto a te contar.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Convite ao Cinema


Há algumas coisas sobre as quais vale a pena falar, uma delas chama-se Krzysztof Kieslowski, cineasta polonês, conhecido por pelo menos uma dezena de filmes. Este final de semana terminei finalmente de assistir a “Trilogia das cores” (Trois Couleurs), formada por títulos cujos nomes fazem referência às cores da bandeira francesa: “A liberdade é azul”, “A igualdade é branca” e “A fraternidade é vermelha”.

O título das obras pode levar a crer que se trata de uma obra social ou política, mas nem de longe a impressão é verossímil e identifica esta obra magnânima. A temática dos filmes que compõem a trilogia são os detalhes da vida, ou, para além, as profundezas da natureza humana. Confesso que me sinto ainda em processo de digestão. Mas os filmes são todos construídos pelos detalhes, o lustre azul que desperta as memórias do marido e filha perdidos, a culpa por não poder conseguir lidar com a família de ratos que se instala no porão, a música que vem da esquina do café; “A liberdade é azul”, este primeiro filme parece-me um filme mais visual do que os demais, e absolutamente não parece necessário mais diálogos para que o filme seja capaz de fazer-nos sentir a dor e o desespero da personagem principal. Tudo acaba por parecer muito frágil, uma ocasião foi o suficiente para fazer a vida da personagem se despedaçar, perder o sentido. A vida (ou o homem) é muito frágil.

No segundo filme, “A igualdade é branca”, alguns sentimentos conflitantes e até um tanto quanto obscuros parecem vir à tona. Um homem rejeitado pela mulher, após o casamento fracassado, que o destrói e o humilha, faz emergir no homem sentimentos conflituosos e nem sempre dignos de expressão. Ele se vê obrigado a voltar ao seu país, onde, embora ainda amando a sua ex-esposa, começa a arquitetar um engenhoso projeto para se tornar bem sucedido e vingar-se da antiga mulher. O filme consegue explorar sentimentos desconfortáveis, que com muito trato por vezes sublimamos. O fundo branco está sempre presente na memória do dia do casamento, que é sempre resgatada.

Por fim, em “A fraternidade é vermelha”, percebemos certo fechamento de um círculo, onde todas as histórias não existem de forma isolada. A clausura do juiz aposentado, ressecado da vida, e que a meu ver representa a personagem mais interessante neste filme, faz-nos perceber a vitalidade e a força da memória e do passado na construção do homem presente. O homem capaz de causar repulsa na modelo, personagem principal, pelos seus modos, tem a capacidade de ser belo, de ser admiravelmente humano.

Nada disso diz coisa alguma da trilogia, além do que a resume de forma muito má e tosca (culpo aqui, parcialmente, a minha disposição madrugada adentro). A obra de Kieslowski ultrapassa a literalidade do aparentemente ordinário de nossas vidas, com muita delicadeza e sensibilidade. E ainda que não possa transpor isto aqui, resta o que eu disse ao início do texto, há certas coisas sobre as quais vale a pena falar. E quem sabe, em algum outro admirador da sétima arte, leigo como eu, isto também possa incitar a curiosidade pela obra... o que já me valeria a postagem.

Bem... agora, a postagem já está justificada.

sábado, 5 de maio de 2012

Muriel


Há um bom tempo, conheci a poesia deste poeta que hoje aqui apresento. E recordo-me de sobremodo uma poesia que me chamou atenção. A beleza destes versos já me inspirou a desbravar outros rumos para a experiência da escrita poética. Talvez, quem leia estranhe o ritmo do poema, conduzido pela curiosa ausência de vírgulas.

Para quem não conhece, há uma corrente de poetas que aboliu o uso das nossas tão familiares vírgulas na escrita do poema. Logicamente, há uma ou algumas razões para isso. Uma das explicações, no entanto, remonta ao antigo grego, que não conhecia ainda sinais de pontuação. Pelo que me consta, a acentuação no grego antigo era o modo pelo qual se separavam as palavras, razão pela qual era tida por uma língua muito sonora, sem quebras, pausas constantes proporcionadas pelos sinais de pontuação. O ponto final, por exemplo, só veio a ser introduzido na língua durante o Império Bizantino, e com a simples função de separar visualmente os vocábulos. Portanto, sob a perspectiva de alguns poetas, a ausência das vírgulas possibilitava a fluidez do poema, uma leitura mais limpa, por assim dizer. Além do que, daí se pode constituir uma certa liberdade ao exprimir-se, porquanto fosse uma libertação da rispidez da gramática, certas vezes, um tanto quanto violenta no trato culto do dia-a-dia. Nosso querido Manuel Bandeira chegou a fazer uso desta técnica com outra finalidade bem curiosa... mas emendemos um ponto final por aqui, antes que eu deixe de chamar a isto de introdução.

Fica para a leitura, Muriel, do poeta português Ruy Belo.


MURIEL

Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas a dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
sem que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido

Ruy Belo

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Alice and the wonders


“Do you hear the snow against the window-panes, Kitty? How nice and soft it sounds! Just as if someone was kissing the window all over outside. I wonder if the snow loves the trees and fields, that it kisses them so gently? And then it covers them up snug, you know, with a white quilt; and perhaps it says, “Go to sleep, darlings, till the summer comes again.” And when they wake up in the summer, Kitty, they dress themselves all in green, and dance about whenever the wind blows – oh, that’s very pretty!’ cried Alice, dropping the ball of worsted to clap her hands. ‘And I do so wish it was true! I’m sure the woods look sleepy in autumm, when the leaves are getting brown.’

CARROLL, Lewis. Alice through the looking-glass.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Dos ofícios de Apolo


A lua me engole quando tarda
O sol me incendeia quando o ergo
Meu rosto clareia a madrugada
Meu pulso é a força da manhã que teço.

Confissão de solidão


Faz muito tempo que aqui não escrevo, e se agora o faço novamente, faço para livrar-me, como numa confissão ou qualquer coisa que assemelhe; há um peso muito grande no silêncio, peso que não mais me voluntario a carregar; e se aqui tomo partido de manifestar-me mais uma vez com outra postagem, assim faço, ainda sem saber se amanhã novamente o farei ou se daqui um ano.

Mas é bem verdade que nunca cri que houvesse utilidade em continuar escrevendo neste espaço, teoricamente público, mas quase como um diário pessoal, sem leitores... Sei, também, que se ao menos fosse eu, de algum modo, menos esporádico em minhas postagens haveria mais conforto para ser lido, mais leitores, quem sabe, ou um leitor, ao menos, vez que se saberia que alguém sempre estaria aqui compartilhando suas descobertas, desorientações e seus pandemônios... Afinal o que mais queremos na vida senão a companhia dos passos de alguém? Mas escrevo, mais uma vez, como se realmente a um diário me dirigisse, pois como não me é costumeiro, trato isto de forma direta e literal. O propósito deste texto não é outro que não o de narrar o ocorrido de duas ou três semanas, ou para ser sincero desabafar da maneira mais direta, sem metáforas ou rodeios, servir-me de objeto para uma terapia nova. Escrevo e isto por si só já é um remédio, ou na pior das hipóteses, um paliativo.

Durante estas últimas semanas, tenho acumulado, é certo, mais desorientações do que qualquer outra coisa que possa compartilhar. Alguns problemas sentimentais, outros familiares, algumas questões éticas, umas e outras frustrações profissionais, em resumo, este é o material que dispus e que me fez imergir em mais reflexões do que estava... preparado para digerir. Passei de uma curta experiência de uma dieta alimentar nova, movido por concepções ideológicas, até, sem querer, a remexer em poeira que já há muito andava coberta, o que a mim me sucedeu após receber uma ligação, creia-me que de todo inesperada, e que por acaso ocasionou duas longas conversas telefônicas.

Bom, posso hoje expressar bem o que entendo por inferno astral, a sensação de que tudo está se despedaçando de modo desconexo e sem controle, ou, para futuras referências, quando coisas não interligadas começam uma após a outra a “entrar pelo cano”.  Eu sinto, contudo, que involuntariamente não escolhi buscar suporte, seja de origem técnica ou pelos laços de afinidade, que são tão mais naturais a meu ver. A minha escolha, talvez, não muito sábia, tornou os dias menos aprazíveis, sem dúvida; e, sobretudo, quase me destruiu, no que tive por resultado uma sucessão de dias perdidos, sem qualquer tipo de aproveitamento ou produção. No entanto, quiçá fizesse parte do que precisava passar. Aprender a segurar as pontas, com as próprias mãos. Além do que, dos últimos seis meses para cá, por motivos diversos, tive algumas das pessoas de maior afeto e que muito me serviam como âncora afastadas de mim, da convivência do dia a dia. E “segurar as pontas” foi a única coisa que me passou pela cabeça e possivelmente a mais difícil de realizar, ainda que tivesse perdido a conta de quanto isto eu repeti a mim, durante toda esta semana que passou, principalmente, quando meu irmão entrou nas famigeradas crises de esquizofrenia e inadvertidamente me conduziu de volta às memórias mais amargas que tive da minha adolescência.

Minha “ex”, o que é uma palavra estranha para caracterizar alguém, ainda mais alguém por quem ainda se guarde certa estima (afinal como não guardar após quatro anos juntos), disse-me esses dias que eu precisava permitir-me sentir raiva, deixar de sublimá-la, racionalizando-a e racionalizando-a sempre; eu precisava sentir-me humano. Parecer-me-iam absurdas essas palavras, primeiro pelo que tomasse por base a ideia de que eu não me sentisse humano, depois, compreender a sabedoria por não optar em racionalizar esse tipo de sentimento... mas acho que estava certa, ao menos em certo ponto. Eu me senti humano, não só raiva eu senti, mas desespero e muito medo, nos últimos dias, de acabar como quem mora ao meu lado, quem atualmente me serve de alerta constante de onde eu não posso chegar. Embora seja bem verdade, como eu falei a ela, que eu sinta mesmo uma necessidade de cultivar dores ou de vivenciá-las com mais afinco. A arte é feita com cicatrizes e, muito amiúde, com feridas ainda expostas. E eu devo confessar que não raro é pela tessitura da arte que me tenho encontrado, às vezes só por ela. Por isso, afirmar-me espiritualmente tem me interessado de tal modo que me afoga a impressão de que toda a minha existência está voltada para este feito, de sorte que nada mais me interessa!