Benditos poetas!
Hoje, inauguro oficialmente uma descuidada série de
apresentações que buscarão percorrer grandes expressões poéticas na língua
portuguesa, com pequenas introduções críticas nada enciclopédicas sobre cada
autor. Trata-se de um projeto que desde um tempo cultivo. E, começo hoje, num
ponto não tão comum como imaginava a princípio. No que restará este capítulo
como uma pequena homenagem a um dos meus poetas prediletos, que ontem estaria
completando 68 anos. Falo do polaco mulato Paulo Leminski.
Leminski é um desses nomes indecifráveis à crítica séria.
Poeta itinerante, que trafega com soberba criatividade em todos os gêneros,
seja na poesia concretista dos anos 70, nos versos mais amadurecidos da década
seguinte, seja na prosa ousada de Catatau; Paulo Leminski é uma voz única na
poesia brasileira, admirador de Maiakovski e Ezra Pound; grande disseminador do
Haicai no Brasil; tradutor de Joyce, Beckett, Petrônio, John Fante e John
Lennon; além de compositor; ensaísta; jornalista; e publicitário. Às vezes, uma
coisa por vez, às vezes, tudo a um só tempo.
Se os anos 70 no Brasil foram anos de chumbo, foram anos
também da Poesia de Chumbo de Paulo Leminski, de versos que seguiam a princípio
os movimentos poéticos e estéticos daquela década, mas que ultrapassa estas
dimensões estéticas. Poeta marginal?
“Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a
paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.
Marginal, escrever na entrelinha,
sem nunca saber direito
quem veio
primeiro,
o ovo ou a galinha.”
Cronologicamente é inevitável fazer essa associação com a “poesia
marginal”, vez que teve por contemporâneos nomes como Ana Cristina César,
Francisco Alvim, Torquato Neto e Chacal. Mas numa rápida leitura notamos que
esta associação parece um pouco distante de significar alguma coisa.
Leminski conseguia destilar, com um humor inigualável, golpes
certeiros de um judoca, em versos que ora meditam ora apedrejam. Sua lógica ou
a falta dela consegue desconcertar o leitor. A poesia de Leminski é urgente,
mesmo quando picha no muro “sentado não tem sentido”, aborrecido das normas e
necessidades do escritório. E consegue transitar por meios extremos, do marketing
publicitário aos haicais de Bashô, do teatro de Beckett à prosa de Petrônio,
das comparações despojadas da escrita ao futebol até à disciplina singular do
judô, em que era faixa preta.
Talvez, Leminski seja a realização última do modernismo
brasileiro. A lição de que o verso é livre, e faça dele o que quiser. Faça
soneto, faça haicai, faça concreto, faça verso livre e branco e colorido ou
faça o silêncio da lápide. Com tudo se pode erguer a argamassa do poeta.
Em Leminski não vemos propriamente e tão somente aquela linguagem
sintética, concisa, em que só caiba a delicadeza da infância que perdura após o
acondicionamento a que nos damos dessa vida urbana, pós-industrial,
pós-concretista, e ainda moderna. Não. Leminski não é dessa delicadeza, mas
nele também cabe a delicadeza do espanto.
Seguem, abaixo, alguns de seus versos, selecionados de sua
caleidoscópica produção poética:
“Dois loucos no bairro
Um passa os dias
chutando postes para ver se acendem
o outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco
todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também.”
“jardim da minha
amiga
todo mundo feliz
até a formiga”
“ALÉM ALMA (UMA GRAMA DEPOIS)
Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar.
Já no peito trago em bronze:
NÃO TEM VAGA NEM LUGAR.
Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
Mais me parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
Pra que é que eu quero
quem chora, se estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?”
“Sorte no jogo
azar no amor
de que me serve
sorte no amor
se o amor é um jogo
e o jogo não é o meu forte,
meu amor?”
“nadando num mar de gente
deixei lá atrás
meu passo à frente”
Para maiores alumbramentos:
- Pequeno documentário de Cristiana Miranda, “Para limpar
lágrimas”
- Documentário para TV realizado por Werner Schumann, “Ervilha
da Fantasia”
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