Atos

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segunda-feira, 25 de julho de 2011

O Menino que Carregava Água na Peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento
e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho, você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios com as suas peraltagens.
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.


Manoel de Barros


Versos de Manoel de Barros extraídos do livro “Poesia Completa. Exercícios de ser criança (1999)”, Leya, São Paulo: 2010, pág. 469/470.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Final da tarde, saio do trabalho, a cabeça dando voltas. Pensando no que queria ter dito; lembrando a voz opaca, de alguém que nunca ouvi; parece que a voz não me reconhecia... acho que já morei com ela. Eu não sei quando.

Tudo perde um pouco o peso. Não sei onde estou, errei o caminho que pego há dois meses. Passo direto. Entro numa favela, algo me diz que estou perto da aerolândia. Há poucos dias não sabia existir tal bairro. Digiro uma ideia por vez, dirijo-me tonto pelas ruas. Tem uma náusea que me remói, e eu... remoído fico.

Geralmente, canto algo. Hoje não tenho repertório. Sugiro o silêncio para que me embale, e saio pelas ruas a procurar meu caminho. Encontro qualquer coisa familiar e me lanço à procura, até que chego à avenida conhecida; verifico que dei uma volta. E com mais outra, mando minha cabeça aprumar o rumo. Minha casa é quilômetros daqui. Sei que perdi minha hora, mas meia hora mais, que diferença faz? Não tenho pressa...

Para quê a teria?

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Que Pessoa és tu?

Como singela homenagem, deixo-lhes hoje alguns versos do mestre maior de nossa poesia. Assim, brindemos à memória do que seria seus 123 anos de nascimento. Os versos já são por demais conhecidos, mas não custa relembrá-los. Enfim, adiantemos, em outro momento, quando mais oportuno, adiciono outras palavras que o tempo agora não permite expressar.
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Poema em linha reta

Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)

[538]

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


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Os versos acima, escritos com o heterônimo de Álvaro de Campos, foram extraídos do livro "Fernando Pessoa - Obra Poética", Cia. José Aguilar Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 418.

domingo, 29 de maio de 2011

Ando sentindo tanta coisa estranha em mim...
Parece-me o mundo qualquer coisa de incompreensível. Qualquer coisa que de mim escorrega e me falta ao entendimento. Mas há tanto sentimento jogado por aí, que o absurdo é ver quem não sinta algo novo a cada instante.

domingo, 15 de maio de 2011

Aprendo a ver...

“Aprendo a ver. Não sei a razão, tudo cala mais fundo em mim e não se detém onde sempre costumava se extinguir. Tenho um âmago que desconhecia. Tudo deságua nele, agora. Não sei o que se passa lá.


Hoje escrevi uma carta, e, ao fazê-lo, me ocorreu que faz apenas três semanas que estou aqui. Três semanas em outro lugar – no campo, por exemplo – poderiam ser como um dia; aqui, são anos. Não quero mais escrever cartas. Por que deveria dizer a alguém que estou me modificando? Se me modifico, deixo de ser aquele que era e passo a ser algo diferente do que até agora fui, e então é evidente que deixo de ter conhecidos. E a pessoas estranhas, a pessoas que não me conhecem, é impossível escrever.



Será que eu já disse? Aprendo a ver. Sim, estou começando. Ainda é difícil. Mas quero aproveitar o meu tempo.


Eu nunca tinha percebido, por exemplo, que existiam tantos rostos. Há um número imenso de pessoas, mas o número de rostos é muito maior, pois cada uma delas possui vários. Há pessoas que ostentam um rosto por anos a fio, e, obviamente, ele se gasta, fica sujo, rompe-se nos vincos, alarga-se como as luvas que usamos durante a viagem. São pessoas parcimoniosas, simples; não o trocam, nem sequer mandam limpá-lo. Esse é bom o bastante, dizem elas, e quem poderá lhes provar o contrário? Pergunta-se, todavia, visto que possuem vários rostos: o que fazem com os outros? Elas os guardam. Seus filhos devem usá-los. Mas também acontece de seus cães saírem com eles por aí. E por que não? Rosto é rosto.


Outras pessoas trocam os seus rostos extraordinariamente depressa, um após o outro, e os gastam pelo uso. Parece-lhes, de início, que os teriam para sempre, porém, mal chegam aos quarenta, e eis o último. Isso tem, é claro, a sua tragicidade. Elas não estão acostumadas a poupar rostos, o último se gastou em oito dias, tem buracos, está fino como papel em muitas partes, e então, pouco a pouco, revela o que há por detrás dele, o não-rosto, e elas andam com esse não-rosto por aí”

Rainer Maria Rilke. Trad.: Renato Zwick

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Nota de pesar em preto e branco

Semana passada vivenciei algo que causou a mim uma certa perplexidade. Durante a semana inteira vi ecoar os reflexos da morte de um sujeito. Não falo de algo nem de longe desconhecido, falo mesmo da morte de Bin Laden. E o que isso acarretou no emocional dos grupos sociais foi o que me surpreendeu, pois dessa vez não vi militares e ativistas extremistas a comemorar ou repudiar a ação militar que ensejou no assassinato, mas civis também. Civis em todo globo dando palmas de alegria a uma operação assassina e a celebrar a morte como o elixir divino. Não trato a questão por um julgamento do caráter do sujeito, não mesmo! Mas observar que sujeitos que nunca se ativeram a questões da política extremista árabe, ou qualquer envolvimento tiveram em conhecer o que essa prática antiterrorista representa, glorificando a morte de um desconhecido... Isso para mim é mais do que sinistro, é doentio. Dá mostra de mais um traço decadente de nossa sociedade. Pois só o que se nota com isso é o quão facilmente as pessoas, hoje, tomam partido das coisas, mesmo que para isso devam elas se abster de certos valores.

Espero que se possa notar, aqui, que não defendo o sujeito de modo algum pelo que fez ou deixou de fazer. Mas não coaduno com a política do olho por olho, bala por bala. O assassinato é, em todo caso, injustificável. Não se busca paz com morte e violência, muito menos com uma comemoração funesta da morte. Urge revermos nossos valores, e aplaudirmos as coisas certas. A pena que aplicamos, hoje, não educa, mas brutaliza mais a sociedade, pois a natureza histórica dessa pena que atualmente temos como solução em nossos sistemas jurídicos é, como mais cedo Nietzsche observou, a de vingança. E já é hora de notarmos que a vingança é cega e bruta! Nos conduz senão a mais violência.

domingo, 27 de março de 2011

A Arte para a Cura


Sinto frequentemente uma falta das coisas; às vezes, beira o oposto sem que eu mesmo perceba, vai desse vazio à sensação de gordura espiritual. Como quem estivesse vivendo coisas demais para digerir. No fundo, ambas as sensações parecem traduzir uma coisa só. A impossibilidade de conduzir os pés pelo mundo. E nesses momentos a única dieta apropriada para uma cura, ao menos, paliativa, que encontro, é usufruto da arte. Produzir e digerir arte em doses calavares...

Esta é a única ferramenta que nessas horas me sobra para conhecer-me um pouco mais, racionalizando e sublimando as situações. Se me é suficiente, não sei. Mas prefiro pensar que a atitude perfaz o ciclo retroalimentar da inspiração artística, que se alimenta de feridas, curando algumas, mitigando outras. Ocorre que por óbvio desígnio que o ofício do artista tem, alguns cortes se fecham, outros se somatizam pelo corpo, permanecendo como contínua fonte de recursos temáticos da produção artística. As consequências que já observei disso são tantas outras que caberiam num ensaio aparte. Portanto, diante disto, prefiro recorrer a um belíssimo insight de Ferreira Gullar, que vi, pela primeira vez, escrito numa parede do museu nacional de belas artes, ao tom de um vermelho firme e forte: “A ARTE EXISTE PORQUE A VIDA NÃO BASTA”

Hoje, dedico à arte o meu culto e a minha adoração. E, na troca de um minuto de silêncio, proponho um dia de abstração das arbitrariedades que a vida traz. Se o artista é só, se não lhe enseja a oportunidade de um ombro verdadeiramente amigo, que não por isso se abstenha, mas que tome o dia para se reconciliar consigo mesmo. Que se desfaça dos laços mais doridos que os relacionamentos lhe empunhem pelo entorno da traqueia, do peito, ou de onde se lhe atem tais laços.


Tracem, hoje, um grande manifesto pela libertação!