Atos

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sábado, 25 de agosto de 2012

1. Benditos Poetas! Paulo Leminski: O polaco mulato ou o louco em trânsito




Benditos poetas!

Hoje, inauguro oficialmente uma descuidada série de apresentações que buscarão percorrer grandes expressões poéticas na língua portuguesa, com pequenas introduções críticas nada enciclopédicas sobre cada autor. Trata-se de um projeto que desde um tempo cultivo. E, começo hoje, num ponto não tão comum como imaginava a princípio. No que restará este capítulo como uma pequena homenagem a um dos meus poetas prediletos, que ontem estaria completando 68 anos. Falo do polaco mulato Paulo Leminski.

Leminski é um desses nomes indecifráveis à crítica séria. Poeta itinerante, que trafega com soberba criatividade em todos os gêneros, seja na poesia concretista dos anos 70, nos versos mais amadurecidos da década seguinte, seja na prosa ousada de Catatau; Paulo Leminski é uma voz única na poesia brasileira, admirador de Maiakovski e Ezra Pound; grande disseminador do Haicai no Brasil; tradutor de Joyce, Beckett, Petrônio, John Fante e John Lennon; além de compositor; ensaísta; jornalista; e publicitário. Às vezes, uma coisa por vez, às vezes, tudo a um só tempo.

Se os anos 70 no Brasil foram anos de chumbo, foram anos também da Poesia de Chumbo de Paulo Leminski, de versos que seguiam a princípio os movimentos poéticos e estéticos daquela década, mas que ultrapassa estas dimensões estéticas. Poeta marginal?

“Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.

Marginal, escrever na entrelinha,
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha.”

Cronologicamente é inevitável fazer essa associação com a “poesia marginal”, vez que teve por contemporâneos nomes como Ana Cristina César, Francisco Alvim, Torquato Neto e Chacal. Mas numa rápida leitura notamos que esta associação parece um pouco distante de significar alguma coisa.

Leminski conseguia destilar, com um humor inigualável, golpes certeiros de um judoca, em versos que ora meditam ora apedrejam. Sua lógica ou a falta dela consegue desconcertar o leitor. A poesia de Leminski é urgente, mesmo quando picha no muro “sentado não tem sentido”, aborrecido das normas e necessidades do escritório. E consegue transitar por meios extremos, do marketing publicitário aos haicais de Bashô, do teatro de Beckett à prosa de Petrônio, das comparações despojadas da escrita ao futebol até à disciplina singular do judô, em que era faixa preta.

Talvez, Leminski seja a realização última do modernismo brasileiro. A lição de que o verso é livre, e faça dele o que quiser. Faça soneto, faça haicai, faça concreto, faça verso livre e branco e colorido ou faça o silêncio da lápide. Com tudo se pode erguer a argamassa do poeta.

Em Leminski não vemos propriamente e tão somente aquela linguagem sintética, concisa, em que só caiba a delicadeza da infância que perdura após o acondicionamento a que nos damos dessa vida urbana, pós-industrial, pós-concretista, e ainda moderna. Não. Leminski não é dessa delicadeza, mas nele também cabe a delicadeza do espanto.

Seguem, abaixo, alguns de seus versos, selecionados de sua caleidoscópica produção poética:


“Dois loucos no bairro

Um passa os dias
chutando postes para ver se acendem

o outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco

todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também.”


“jardim da minha amiga
todo mundo feliz
até a formiga”


“ALÉM ALMA (UMA GRAMA DEPOIS)

Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar.
Já no peito trago em bronze:
NÃO TEM VAGA NEM LUGAR.
Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
Mais me parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
Pra que é que eu quero
quem chora, se estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?”


“Sorte no jogo
azar no amor
de que me serve
sorte no amor
se o amor é um jogo
e o jogo não é o meu forte,
meu amor?”


“nadando num mar de gente
deixei lá atrás
meu passo à frente”




Para maiores alumbramentos:
- Pequeno documentário de Cristiana Miranda, “Para limpar lágrimas”

- Documentário para TV realizado por Werner Schumann, “Ervilha da Fantasia”

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Poema de Al Berto





"Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu… como seriam felizes as mulheres
à beira-mar debruçadas para luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos… sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta… dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca do mar ao fundo da rua
assim envelheci… acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no
coração, mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite a felicidade"

Al Berto

sábado, 11 de agosto de 2012

Annita e sua poesia de muitas vozes

A postagem hoje vem a mostrar uma das musas que descobri nas minhas recentes leituras poéticas, dona de uma poesia fabulosa. Escritora contemporânea e de uma linguagem contemporânea, que me faz revisitar uma das citações de Apollinaire, que afirmava todas as formas serem boas desde que fossem vivas e falassem com a alma. A poesia de Annita Costa Malufe fala com a alma, num discurso íntimo e de grande propriedade estética. Vozes entrecortadas, memórias, flashes e, acima de tudo, uma grande subjetividade, compõem os seus versos. Versos que por vezes crescem na voz, às vezes marejam como o mar, trabalhando ideias num plano de fundo que vão e voltam na leitura. Carece uma leitura atenta para apreendê-la, carece lê-la com os olhos da alma.

Segue, pois, um de seus poemas que compõe o livro "Como se caísse devagar":

“seu corpo estava torcido ao revés
e havia uma dor
uma chuva interminável
o dia todo passado ao relento e
ele então andaria mais algumas quadras
para se abrigar algumas quadras a mais
tendo aquela mulher na cabeça
eu não posso te esquecer eu preciso
te esquecer como quem esquece um guarda-chuva
no táxi como quem esquece
a letra de uma música que ouvia todos os dias
eu não posso te esquecer enquanto o dia não abre
andar mais umas quadras um toldo para se abrigar
isto me faz lembrar de algumas tardes
de cabelo encharcado pés encharcados
sem poder voltar para casa
esperar a chuva passar o sapato secar
isto me faz lembrar me faz esquecer
algumas tardes vazias procurando modos de
ocupar o tempo modos de escorrer o tempo
até o próximo dia a próxima luz
fazer esquecer pode passar por isto
você abre a cortina e de início não encontra nada
você coloca as mãos para fora e as mãos
buscam rapidamente o casaco
ela se lembrava de esperar mais um pouco
ocupar as tardes vazias
isto soava uma coisa de juventude
tardes vazias procurar o que fazer
aguardar a chuva passar os sapatos secarem
quem estaria vivendo isto hoje ele ela
o corpo ao revés as mãos frias sob o casaco
o dorso se desviando levemente
tardes vazias a chuva interminável
se abrigue neste toldo posso
te fazer dormir
até o próximo dia a próxima luz
posso te fazer dormir”

Annita Costa Malufe