Atos

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domingo, 15 de maio de 2011

Aprendo a ver...

“Aprendo a ver. Não sei a razão, tudo cala mais fundo em mim e não se detém onde sempre costumava se extinguir. Tenho um âmago que desconhecia. Tudo deságua nele, agora. Não sei o que se passa lá.


Hoje escrevi uma carta, e, ao fazê-lo, me ocorreu que faz apenas três semanas que estou aqui. Três semanas em outro lugar – no campo, por exemplo – poderiam ser como um dia; aqui, são anos. Não quero mais escrever cartas. Por que deveria dizer a alguém que estou me modificando? Se me modifico, deixo de ser aquele que era e passo a ser algo diferente do que até agora fui, e então é evidente que deixo de ter conhecidos. E a pessoas estranhas, a pessoas que não me conhecem, é impossível escrever.



Será que eu já disse? Aprendo a ver. Sim, estou começando. Ainda é difícil. Mas quero aproveitar o meu tempo.


Eu nunca tinha percebido, por exemplo, que existiam tantos rostos. Há um número imenso de pessoas, mas o número de rostos é muito maior, pois cada uma delas possui vários. Há pessoas que ostentam um rosto por anos a fio, e, obviamente, ele se gasta, fica sujo, rompe-se nos vincos, alarga-se como as luvas que usamos durante a viagem. São pessoas parcimoniosas, simples; não o trocam, nem sequer mandam limpá-lo. Esse é bom o bastante, dizem elas, e quem poderá lhes provar o contrário? Pergunta-se, todavia, visto que possuem vários rostos: o que fazem com os outros? Elas os guardam. Seus filhos devem usá-los. Mas também acontece de seus cães saírem com eles por aí. E por que não? Rosto é rosto.


Outras pessoas trocam os seus rostos extraordinariamente depressa, um após o outro, e os gastam pelo uso. Parece-lhes, de início, que os teriam para sempre, porém, mal chegam aos quarenta, e eis o último. Isso tem, é claro, a sua tragicidade. Elas não estão acostumadas a poupar rostos, o último se gastou em oito dias, tem buracos, está fino como papel em muitas partes, e então, pouco a pouco, revela o que há por detrás dele, o não-rosto, e elas andam com esse não-rosto por aí”

Rainer Maria Rilke. Trad.: Renato Zwick

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