Atos

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quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Alguns gestos domésticos

"Tu estás aqui", de Ruy Belo 



"(...) Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço (...)"

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Cor e descores


Tenho quase uma necessidade de tomar nota da vida, aqui e acolá. Escrever para mim um diário ocasional, como este de que me aproprio vez ou outra para o mister de confessionário.

Entre um músculo e outro que se contrai, respiro. Dentro a sensação de ter deixado um turbilhão, uma vida de outrem para viver a minha. Volteio a casa, sento-me à cozinha, vejo a pia, gota a gota, escorrendo uma vida. Sei que não é a minha. Aperto a pia, aperta-me uma veia bem fundo. Desço a mão à torneira, e estreito a sua fragilidade de gotejar vidas.

Pausam-me os olhos sobre alguma memória. Não a distingo, e vivo bem por alto.

Queria tanto dizer às pessoas que amo como a vida tem acontecido! Ninguém jamais soube que o meu mapa astral é outro, que tenho errado de ascendente... Além disso, eu descobri que o amarelo tem outros tons. Que a chuva quando cai lá fora me molha um pouco. Eu descobri que posso reescrever-me. Que mais do que nunca eu tenho me reescrito. Eu descobri que é preciso ler Paul Valéry. E que há coisas que eu só entendo por uma criança. Além de tudo, hoje eu sei, como Darcy disse, que às vezes é preciso mudar para permanecer o mesmo.

sábado, 25 de agosto de 2012

1. Benditos Poetas! Paulo Leminski: O polaco mulato ou o louco em trânsito




Benditos poetas!

Hoje, inauguro oficialmente uma descuidada série de apresentações que buscarão percorrer grandes expressões poéticas na língua portuguesa, com pequenas introduções críticas nada enciclopédicas sobre cada autor. Trata-se de um projeto que desde um tempo cultivo. E, começo hoje, num ponto não tão comum como imaginava a princípio. No que restará este capítulo como uma pequena homenagem a um dos meus poetas prediletos, que ontem estaria completando 68 anos. Falo do polaco mulato Paulo Leminski.

Leminski é um desses nomes indecifráveis à crítica séria. Poeta itinerante, que trafega com soberba criatividade em todos os gêneros, seja na poesia concretista dos anos 70, nos versos mais amadurecidos da década seguinte, seja na prosa ousada de Catatau; Paulo Leminski é uma voz única na poesia brasileira, admirador de Maiakovski e Ezra Pound; grande disseminador do Haicai no Brasil; tradutor de Joyce, Beckett, Petrônio, John Fante e John Lennon; além de compositor; ensaísta; jornalista; e publicitário. Às vezes, uma coisa por vez, às vezes, tudo a um só tempo.

Se os anos 70 no Brasil foram anos de chumbo, foram anos também da Poesia de Chumbo de Paulo Leminski, de versos que seguiam a princípio os movimentos poéticos e estéticos daquela década, mas que ultrapassa estas dimensões estéticas. Poeta marginal?

“Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.

Marginal, escrever na entrelinha,
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha.”

Cronologicamente é inevitável fazer essa associação com a “poesia marginal”, vez que teve por contemporâneos nomes como Ana Cristina César, Francisco Alvim, Torquato Neto e Chacal. Mas numa rápida leitura notamos que esta associação parece um pouco distante de significar alguma coisa.

Leminski conseguia destilar, com um humor inigualável, golpes certeiros de um judoca, em versos que ora meditam ora apedrejam. Sua lógica ou a falta dela consegue desconcertar o leitor. A poesia de Leminski é urgente, mesmo quando picha no muro “sentado não tem sentido”, aborrecido das normas e necessidades do escritório. E consegue transitar por meios extremos, do marketing publicitário aos haicais de Bashô, do teatro de Beckett à prosa de Petrônio, das comparações despojadas da escrita ao futebol até à disciplina singular do judô, em que era faixa preta.

Talvez, Leminski seja a realização última do modernismo brasileiro. A lição de que o verso é livre, e faça dele o que quiser. Faça soneto, faça haicai, faça concreto, faça verso livre e branco e colorido ou faça o silêncio da lápide. Com tudo se pode erguer a argamassa do poeta.

Em Leminski não vemos propriamente e tão somente aquela linguagem sintética, concisa, em que só caiba a delicadeza da infância que perdura após o acondicionamento a que nos damos dessa vida urbana, pós-industrial, pós-concretista, e ainda moderna. Não. Leminski não é dessa delicadeza, mas nele também cabe a delicadeza do espanto.

Seguem, abaixo, alguns de seus versos, selecionados de sua caleidoscópica produção poética:


“Dois loucos no bairro

Um passa os dias
chutando postes para ver se acendem

o outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco

todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também.”


“jardim da minha amiga
todo mundo feliz
até a formiga”


“ALÉM ALMA (UMA GRAMA DEPOIS)

Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar.
Já no peito trago em bronze:
NÃO TEM VAGA NEM LUGAR.
Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
Mais me parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
Pra que é que eu quero
quem chora, se estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?”


“Sorte no jogo
azar no amor
de que me serve
sorte no amor
se o amor é um jogo
e o jogo não é o meu forte,
meu amor?”


“nadando num mar de gente
deixei lá atrás
meu passo à frente”




Para maiores alumbramentos:
- Pequeno documentário de Cristiana Miranda, “Para limpar lágrimas”

- Documentário para TV realizado por Werner Schumann, “Ervilha da Fantasia”

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Poema de Al Berto





"Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu… como seriam felizes as mulheres
à beira-mar debruçadas para luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos… sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta… dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca do mar ao fundo da rua
assim envelheci… acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no
coração, mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite a felicidade"

Al Berto

sábado, 11 de agosto de 2012

Annita e sua poesia de muitas vozes

A postagem hoje vem a mostrar uma das musas que descobri nas minhas recentes leituras poéticas, dona de uma poesia fabulosa. Escritora contemporânea e de uma linguagem contemporânea, que me faz revisitar uma das citações de Apollinaire, que afirmava todas as formas serem boas desde que fossem vivas e falassem com a alma. A poesia de Annita Costa Malufe fala com a alma, num discurso íntimo e de grande propriedade estética. Vozes entrecortadas, memórias, flashes e, acima de tudo, uma grande subjetividade, compõem os seus versos. Versos que por vezes crescem na voz, às vezes marejam como o mar, trabalhando ideias num plano de fundo que vão e voltam na leitura. Carece uma leitura atenta para apreendê-la, carece lê-la com os olhos da alma.

Segue, pois, um de seus poemas que compõe o livro "Como se caísse devagar":

“seu corpo estava torcido ao revés
e havia uma dor
uma chuva interminável
o dia todo passado ao relento e
ele então andaria mais algumas quadras
para se abrigar algumas quadras a mais
tendo aquela mulher na cabeça
eu não posso te esquecer eu preciso
te esquecer como quem esquece um guarda-chuva
no táxi como quem esquece
a letra de uma música que ouvia todos os dias
eu não posso te esquecer enquanto o dia não abre
andar mais umas quadras um toldo para se abrigar
isto me faz lembrar de algumas tardes
de cabelo encharcado pés encharcados
sem poder voltar para casa
esperar a chuva passar o sapato secar
isto me faz lembrar me faz esquecer
algumas tardes vazias procurando modos de
ocupar o tempo modos de escorrer o tempo
até o próximo dia a próxima luz
fazer esquecer pode passar por isto
você abre a cortina e de início não encontra nada
você coloca as mãos para fora e as mãos
buscam rapidamente o casaco
ela se lembrava de esperar mais um pouco
ocupar as tardes vazias
isto soava uma coisa de juventude
tardes vazias procurar o que fazer
aguardar a chuva passar os sapatos secarem
quem estaria vivendo isto hoje ele ela
o corpo ao revés as mãos frias sob o casaco
o dorso se desviando levemente
tardes vazias a chuva interminável
se abrigue neste toldo posso
te fazer dormir
até o próximo dia a próxima luz
posso te fazer dormir”

Annita Costa Malufe

sábado, 21 de julho de 2012

lugar II



Há sempre uma noite terrível para quem se despede
do esquecimento. Para quem sai,
ainda louco de sono, do meio
do silêncio. Uma noite
ingénua para quem canta.
Deslocada e abandonada noite onde o fogo se instalou
que varre as pedras da cabeça.
Que mexe na língua a cinza desprendida.

E alguém me pede: canta.
Alguém diz, tocando-me com seu livre delírio:
canta até te mudares em cão azul,
ou estrela electrocutada, ou em homem
nocturno. Eu penso
também que cantaria para além das portas até
raízes de chuva onde peixes
cor de vinho se alimentam
de raios, seixos límpidos.
Até à manhã orçando
pedúnculos e gotas ou teias que balançam
contra o hálito.
Até à noite que retumba sobre as pedreiras.
Canta - dizem em mim - até ficares
como um dia órfão contornado
por todos os estremecimentos.
E eu cantarei transformando-me em campo
de cinza transtornada.
Em dedicatória sangrenta.

Há em cada instante uma noite sacrificada
ao pavor e à alegria.
Embatente com suas morosas trevas.
Desde o princípio, uma onda que se abre
no corpo, degraus e degraus de uma onda.
E alaga as mãos que brilham e brilham.
Digo que amaria o interior da minha canção,
seus tubos de som quente e soturno.
Há uma roda de dedos no ar.
A língua flamejante.
Noite, uma inextinguível
inexprimível
noite. Uma noite máxima pelo pensamento.
Pela voz entre as águas tão verdes do sono.
Antiguidade que se transfigura, ladeada
por gestos ocupados no lume.

Pedem tanto a quem ama: pedem
o amor. Ainda pedem
a solidão e a loucura.
Dizem: dá-nos a tua canção que sai da sombra fria.
E eles querem dizer: tu darás a tua existência
ardida, a pura mortalidade.
Às mulheres amadas darei as pedras voantes,
uma a uma, os pára-
-raios abertíssimos da voz.
As raízes afogadas do nascimento. Darei o sono
onde um copo fala
fusiforme
batido pelos dedos. Pedem tudo aquilo em que respiro.
Dá-nos tua ardente e sombria transformação.
E eu darei cada uma das minhas semanas transparentes,
lentamente uma sobre a outra.
Quando se esclarecem as portas que rodam
para o lugar da noite tremendamente
clara. Noite de uma voz
humana. De uma acumulação
atrasada e sufocante.
Há sempre sempre uma ilusão abismada
numa noite, numa vida. Uma ilusão sobre o sono debaixo
do cruzamento do fogo.
Prodígio para as vozes de uma vida repentina.

E se aquele que ama dorme, as mulheres que ele ama
sentam-se e dizem:
ama-nos. E ele ama-as.
Desaperta uma veia, começa a delirar, vê
dentro de água os grandes pássaros e o céu habitado
pela vida quimérica das pedras.
Vê que os jasmins gritam nos galhos das chamas.
Ele arranca os dedos armados pelo fogo
e oferece-os à noite fabulosa.
Ilumina de tantos dedos
a cândida variedade das mulheres amadas.
E se ele acorda, então dizem-lhe
que durma e sonhe.
E ele morre e passa de um dia para outro.
Inspira os dias, leva os dias
para o meio da eternidade, e Deus ajuda
a amarga beleza desses dias.
Até que Deus é destruído pelo extremo exercício
da beleza.

Porque não haverá paz para aquele que ama.
Seu ofício é incendiar povoações, roubar
e matar,
e alegrar o mundo, e aterrorizar,
e queimar os lugares reticentes deste mundo.
Deve apagar todas as luzes da terra e, no meio
da noite aparecente,
votar a vida à interna fonte dos povos.
Deve instaurar o corpo e subi-lo,
lanço a lanço,
cantando leve e profundo.
Com as feridas.
Com todas as flores hipnotizadas.
Deve ser aéreo e implacável.
Sobre o sono envolvida pelas gotas
abaladas, no meio de espinhos, arrastando as primitivas
pedras. Sobre o interior

da respiração com sua massa
de apagadas estrelas. Noite alargada
e terrível terrível noite para uma voz
se libertar. Para uma voz dura,
uma voz somente. Uma vida expansiva e refluída.

Se pedem: canta, ele deve transformar-se no som.
E se as mulheres colocam os dedos sobre
a sua boca e dizem que seja como um violino penetrante,
ele não deve ser como o maior violino.
Ele será o único único violino
Porque nele começará a música dos violinos gerais
e acabará a inovação cantada.
Porque aquele que ama nasce e morre.
Vive nele o fim espalhado da terra.





herberto helder
lugar (poema II)
poesia toda
assírio & alvim
1981

segunda-feira, 9 de julho de 2012

UMA PÁGINA EM BRANCO


Nota: Posto, hoje, um texto antigo, para relembrar minhas imprudências literárias. De lá para cá, a escrita minha mudou, assim como se modificaram a minha concepção e modo de composição de prosa, mas este texto ainda me traz uma lembrança feliz.
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Nem sempre o amor é provocado por aquilo que excita no peito de uma pessoa o vislumbramento de ver no peito de outra um vasto horizonte, nem sempre o amor é o desatino que soa nas bocas como o mais belo soneto. Amor nem sempre é fogo, embora possa arder um instante, esquentar nos braços os braços de outro ser distante e reaver a chama de um sonho arrebatado pelo correr dos anos. Amar é mais, simplesmente, escolher com os olhos fechados os lances de um jogo azar, quem vai lutar contigo, quem com contigo vai correr o céu e o mar. O afago de um beijo tem o mesmo sentido de uma carta de quem manda notícias de além-mar.
Frequentemente, quando olho às mulheres me sinto torpe, com um embaraço de quem se espraie, pelo solo, imundo; desloco a vista, a vida também, mas o olhar me consome, cedo a desejos tímidos de olhá-las mais um segundo, perpetuar um desejo tolo frente ao desespero de manter-me na mais pudica inércia, fingindo-me impenetrável a devaneios. Creia, sim, que talvez eu diga a verdade. Ainda isto dizendo, nada significaria, senão para algum psicólogo que pode querer emendar aqui uma outra leitura, vil, desconfortável, mas o caso, confesso que não me produz preocupação. Já tive muitos segredos, mas hoje os que me sobram são involuntários, então se façam de leitores, desde já, e poupem-me o tempo de outra vez ter de repetir o que aqui digo. Vou apresentar-me como um simulacro, e tirem de mim o que quiser.
A bem dizer, queria ter iniciado isto de outra forma, mais cronológica, organizada, explicativa, em que contasse minha vida inteira; mas a minha natureza não adere a isso. Também não me levo à prática de dividir as coisas em compêndios, catalogando informações marcadas, fichando páginas... portanto contentem-se a esta simples descrição, meio embaralhada e ainda confusa, mas sincera.

 “Nos lábios dela, posto, havia não sei o quê de um veneno afrodisíaco, cada mergulhar naquele corpo molhado das tardes de domingo me embebedava de um frenesi torpe, selvagem. Aqueles olhos de horizontes bem traçados me tiravam os lumes de meu desejo louco; não via... não via sequer de meu caminho um ladrilho, queria apenas me afogar; queria me perder naqueles dois laços que eram os seus braços. Hoje, cego como Ray Charles, com o coração tragado por aquela alma, caminho as tardes meio a parte de tudo; e com um sorriso largo estampado no rosto, alheio às constatações mundanas, vou erguendo castelos, conclamando nos versos uma paixão que queima sempre a quem ama. É com esse amor diluído pelas paredes que escrevo a partir de hoje a minha história.” (9/11/2009)

Escrevi isto há três semanas ou, dirá, aqui um amigo a outro, que o tempo já se adentrou nos anos. A carta era a um compadre de quem retive um gosto especial, um grande apreço. A carta, porém, não lhe enviei, é óbvio. Óbvio pelo conteúdo, e por também ser claramente notável que uma expressão assim de sentimento é meramente autoprotetiva, desencadeada por algum desequilíbrio da glândula tireóide. Sim, chego ao ponto mais baixo de confessar-me vítima de depressão, e postar tudo isto aqui prevendo um argumento a meu favor. Contudo, se isto a ti não explica tudo, pouco importará as linhas que se seguem; assim sendo, pare desde já a leitura para que te não aborreça nem me entedie o conto com estes teus olhos de prosa, pois aqui não há prosa, e é para ti, o outro, a quem escrevo o que aqui se sucede. Quanto à carta, materialmente falando, afirmo que assim me mantenho em parte, preso por dois meses aos velhos costumes, por carinhos dispendiosos, por uma antecipação ufanista de vaidades, por meras veleidades, pois se me desvendas, sabes que apenas posso ter inveja de não parecer tolo por qualquer motivo. Deste modo, nomeio isto, sim, por desespero, um desespero dilacerante de transformar o passado numa máquina de engenho gasta e sem graça, com roldanas velhas e já inertes trilhos. Para me afagar o peito, nem sequer cultuo mais manipansos como outrora, nem vacas sagradas, nem almas penadas, nem hierofanis ridículos. Só mais ridículo ainda sou eu, por ser ridículo sem ter um amor que me permita sê-lo. Amo o vazio, apenas... Amo por um desespero ardente aquilo que não há.
A vida é sempre um embaraço de egos; isto arrisco-me a dizer que apreendi com o passar dos anos. Como Drummond nos cochichou em versos, alguém ama alguém, que outro alguém ama, e que ama outro ser distinto, que no fim do conto e das contas, não ama ninguém. Na verdade, creio que este último apenas ama, não conhece um objeto definido em que postar o seu amor. No entanto, cedo a muito contragosto em dizer que é preciso amar egoisticamente alguém, ao menos uma vez. Bem, de fato, melhor que seja somente uma vez; pois antes, poupemo-nos do vício. Existe um amor univalente que nos condena ao marasmo mais profundo; mas se ao inverso nos amamos, pelos outros olhos somos eternamente condenados.
Sim, eternamente condenados... Resta saber quem nos condena. Raquel, por exemplo, deixou-me. Eu não a condeno, ela a mim, não sei... pois ainda me ama, e ainda me diz, que me busca atrás das páginas do caderno, atrás do meu caderno que a ela deixei. De mês em mês, recebo uma carta sua, em que sempre me diz, não sei o porquê – “não me procure, não me responda” –; embora saiba que por trás daquelas palavras se encontre um sentido diverso, no qual se entende o oposto do que me diz em verso, como se a carta me dissesse assim – “Se me esqueces, de ti não me esqueço, meu bem...”. Que eu a ame, é certo; mas hoje, a amo como a um amigo, num amor livre, sem algemas, sem compromissos. Um amor polivalente, como todos os amores deveriam ser, se não fossem livres para escolhê-los ser.
Contudo, eu não a engano; quando inesperadamente, minha voz esbarra com a dela ao telefone, ainda sou eu quem falo, com o amor que muito bem me resta sobre as prateleiras da biblioteca. O único fato que ela ignora é que já não a amo do mesmo modo que a amei um dia. E desses encontros ao acaso, há de se ressaltar que nenhum é de minha obra.
Apenas sei que, hoje, ao sentar por sobre os dias de domingo, vejo meu amor disperso, como fosse um mar a singrar por sobre si, vejo na alçada da grande baía como ele corre como um menino. No fundo, ele me reinventa os dias. Amar distraído é a coisa que mais me rende alegria. Contudo, não hei de dizer que as noites minhas são mais frias, ainda que sejam. Apenas, mais minhas hão de ser as horas que passam ao correr de meus dias.