Nota: Posto, hoje, um texto antigo, para relembrar minhas imprudências literárias. De lá para cá, a escrita minha mudou, assim como se modificaram a minha concepção e modo de composição de prosa, mas este texto ainda me traz uma lembrança feliz.
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Nem sempre o amor é
provocado por aquilo que excita no peito de uma pessoa o vislumbramento de ver
no peito de outra um vasto horizonte, nem sempre o amor é o desatino que soa
nas bocas como o mais belo soneto. Amor nem sempre é fogo, embora possa arder
um instante, esquentar nos braços os braços de outro ser distante e reaver a
chama de um sonho arrebatado pelo correr dos anos. Amar é mais, simplesmente,
escolher com os olhos fechados os lances de um jogo azar, quem vai lutar contigo,
quem com contigo vai correr o céu e o mar. O afago de um beijo tem o mesmo
sentido de uma carta de quem manda notícias de além-mar.
Frequentemente, quando
olho às mulheres me sinto torpe, com um embaraço de quem se espraie, pelo solo,
imundo; desloco a vista, a vida também, mas o olhar me consome, cedo a desejos
tímidos de olhá-las mais um segundo, perpetuar um desejo tolo frente ao
desespero de manter-me na mais pudica inércia, fingindo-me impenetrável a
devaneios. Creia, sim, que talvez eu diga a verdade. Ainda isto dizendo, nada
significaria, senão para algum psicólogo que pode querer emendar aqui uma outra
leitura, vil, desconfortável, mas o caso, confesso que não me produz
preocupação. Já tive muitos segredos, mas hoje os que me sobram são involuntários,
então se façam de leitores, desde já, e poupem-me o tempo de outra vez ter de
repetir o que aqui digo. Vou apresentar-me como um simulacro, e tirem de mim o
que quiser.
A bem dizer, queria ter
iniciado isto de outra forma, mais cronológica, organizada, explicativa, em que
contasse minha vida inteira; mas a minha natureza não adere a isso. Também não
me levo à prática de dividir as coisas em compêndios, catalogando informações
marcadas, fichando páginas... portanto contentem-se a esta simples descrição, meio
embaralhada e ainda confusa, mas sincera.
“Nos lábios dela, posto, havia não sei o quê
de um veneno afrodisíaco, cada mergulhar naquele corpo molhado das tardes de
domingo me embebedava de um frenesi torpe, selvagem. Aqueles olhos de
horizontes bem traçados me tiravam os lumes de meu desejo louco; não via... não
via sequer de meu caminho um ladrilho, queria apenas me afogar; queria me
perder naqueles dois laços que eram os seus braços. Hoje, cego como Ray
Charles, com o coração tragado por aquela alma, caminho as tardes meio a parte
de tudo; e com um sorriso largo estampado no rosto, alheio às constatações
mundanas, vou erguendo castelos, conclamando nos versos uma paixão que queima
sempre a quem ama. É com esse amor diluído pelas paredes que escrevo a partir
de hoje a minha história.” (9/11/2009)
Escrevi isto há três
semanas ou, dirá, aqui um amigo a outro, que o tempo já se adentrou nos anos. A
carta era a um compadre de quem retive um gosto especial, um grande apreço. A
carta, porém, não lhe enviei, é óbvio. Óbvio pelo conteúdo, e por também ser
claramente notável que uma expressão assim de sentimento é meramente
autoprotetiva, desencadeada por algum desequilíbrio da glândula tireóide. Sim,
chego ao ponto mais baixo de confessar-me vítima de depressão, e postar tudo
isto aqui prevendo um argumento a meu favor. Contudo, se isto a ti não explica
tudo, pouco importará as linhas que se seguem; assim sendo, pare desde já a
leitura para que te não aborreça nem me entedie o conto com estes teus olhos de
prosa, pois aqui não há prosa, e é para ti, o outro, a quem escrevo o que aqui
se sucede. Quanto à carta, materialmente falando, afirmo que assim me mantenho
em parte, preso por dois meses aos velhos costumes, por carinhos dispendiosos,
por uma antecipação ufanista de vaidades, por meras veleidades, pois se me
desvendas, sabes que apenas posso ter inveja de não parecer tolo por qualquer
motivo. Deste modo, nomeio isto, sim, por desespero, um desespero dilacerante
de transformar o passado numa máquina de engenho gasta e sem graça, com
roldanas velhas e já inertes trilhos. Para me afagar o peito, nem sequer cultuo
mais manipansos como outrora, nem vacas sagradas, nem almas penadas, nem
hierofanis ridículos. Só mais ridículo ainda sou eu, por ser ridículo sem ter
um amor que me permita sê-lo. Amo o vazio, apenas... Amo por um desespero
ardente aquilo que não há.
A vida é sempre um
embaraço de egos; isto arrisco-me a dizer que apreendi com o passar dos anos.
Como Drummond nos cochichou em versos, alguém ama alguém, que outro alguém ama,
e que ama outro ser distinto, que no fim do conto e das contas, não ama
ninguém. Na verdade, creio que este último apenas ama, não conhece um objeto
definido em que postar o seu amor. No entanto, cedo a muito contragosto em
dizer que é preciso amar egoisticamente alguém, ao menos uma vez. Bem, de fato,
melhor que seja somente uma vez; pois antes, poupemo-nos do vício. Existe um
amor univalente que nos condena ao marasmo mais profundo; mas se ao inverso nos
amamos, pelos outros olhos somos eternamente condenados.
Sim, eternamente
condenados... Resta saber quem nos condena. Raquel, por exemplo, deixou-me. Eu
não a condeno, ela a mim, não sei... pois ainda me ama, e ainda me diz, que me
busca atrás das páginas do caderno, atrás do meu caderno que a ela deixei. De
mês em mês, recebo uma carta sua, em que sempre me diz, não sei o porquê – “não
me procure, não me responda” –; embora saiba que por trás daquelas palavras se
encontre um sentido diverso, no qual se entende o oposto do que me diz em
verso, como se a carta me dissesse assim – “Se me esqueces, de ti não me
esqueço, meu bem...”. Que eu a ame, é certo; mas hoje, a amo como a um amigo,
num amor livre, sem algemas, sem compromissos. Um amor polivalente, como todos
os amores deveriam ser, se não fossem livres para escolhê-los ser.
Contudo, eu não a
engano; quando inesperadamente, minha voz esbarra com a dela ao telefone, ainda
sou eu quem falo, com o amor que muito bem me resta sobre as prateleiras da
biblioteca. O único fato que ela ignora é que já não a amo do mesmo modo que a
amei um dia. E desses encontros ao acaso, há de se ressaltar que nenhum é de
minha obra.
Apenas sei que, hoje,
ao sentar por sobre os dias de domingo, vejo meu amor disperso, como fosse um
mar a singrar por sobre si, vejo na alçada da grande baía como ele corre como
um menino. No fundo, ele me reinventa os dias. Amar distraído é a coisa que
mais me rende alegria. Contudo, não hei de dizer que as noites minhas são mais
frias, ainda que sejam. Apenas, mais minhas hão de ser as horas que passam ao
correr de meus dias.