Atos

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quinta-feira, 24 de maio de 2012

Verso e música


Minha ideia continua a mesma. A arte é uma forma de resgatar a integridade do homem. Um homem não pode ser completo, ser por inteiro, sem a presença da arte.

A palavra, a música, o gesto, a cor, mais do que nunca, têm composto minhas semanas. Tomei coragem para enredar o meu romance, de que me esquivei por muito tempo para escrevê-lo sob aquele típico argumento de que me faltava preparo, tempo, experiência... quando nada disso tem profunda relevância. Hoje, ainda me falta preparo, tempo e experiência, só me sobra a pretensão recalcada e a modéstia falsa de quem recebe um elogio. Mas nem por isso deixo de escrever.

Diário, meu querido Diário, tenho tanto a te contar.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Convite ao Cinema


Há algumas coisas sobre as quais vale a pena falar, uma delas chama-se Krzysztof Kieslowski, cineasta polonês, conhecido por pelo menos uma dezena de filmes. Este final de semana terminei finalmente de assistir a “Trilogia das cores” (Trois Couleurs), formada por títulos cujos nomes fazem referência às cores da bandeira francesa: “A liberdade é azul”, “A igualdade é branca” e “A fraternidade é vermelha”.

O título das obras pode levar a crer que se trata de uma obra social ou política, mas nem de longe a impressão é verossímil e identifica esta obra magnânima. A temática dos filmes que compõem a trilogia são os detalhes da vida, ou, para além, as profundezas da natureza humana. Confesso que me sinto ainda em processo de digestão. Mas os filmes são todos construídos pelos detalhes, o lustre azul que desperta as memórias do marido e filha perdidos, a culpa por não poder conseguir lidar com a família de ratos que se instala no porão, a música que vem da esquina do café; “A liberdade é azul”, este primeiro filme parece-me um filme mais visual do que os demais, e absolutamente não parece necessário mais diálogos para que o filme seja capaz de fazer-nos sentir a dor e o desespero da personagem principal. Tudo acaba por parecer muito frágil, uma ocasião foi o suficiente para fazer a vida da personagem se despedaçar, perder o sentido. A vida (ou o homem) é muito frágil.

No segundo filme, “A igualdade é branca”, alguns sentimentos conflitantes e até um tanto quanto obscuros parecem vir à tona. Um homem rejeitado pela mulher, após o casamento fracassado, que o destrói e o humilha, faz emergir no homem sentimentos conflituosos e nem sempre dignos de expressão. Ele se vê obrigado a voltar ao seu país, onde, embora ainda amando a sua ex-esposa, começa a arquitetar um engenhoso projeto para se tornar bem sucedido e vingar-se da antiga mulher. O filme consegue explorar sentimentos desconfortáveis, que com muito trato por vezes sublimamos. O fundo branco está sempre presente na memória do dia do casamento, que é sempre resgatada.

Por fim, em “A fraternidade é vermelha”, percebemos certo fechamento de um círculo, onde todas as histórias não existem de forma isolada. A clausura do juiz aposentado, ressecado da vida, e que a meu ver representa a personagem mais interessante neste filme, faz-nos perceber a vitalidade e a força da memória e do passado na construção do homem presente. O homem capaz de causar repulsa na modelo, personagem principal, pelos seus modos, tem a capacidade de ser belo, de ser admiravelmente humano.

Nada disso diz coisa alguma da trilogia, além do que a resume de forma muito má e tosca (culpo aqui, parcialmente, a minha disposição madrugada adentro). A obra de Kieslowski ultrapassa a literalidade do aparentemente ordinário de nossas vidas, com muita delicadeza e sensibilidade. E ainda que não possa transpor isto aqui, resta o que eu disse ao início do texto, há certas coisas sobre as quais vale a pena falar. E quem sabe, em algum outro admirador da sétima arte, leigo como eu, isto também possa incitar a curiosidade pela obra... o que já me valeria a postagem.

Bem... agora, a postagem já está justificada.

sábado, 5 de maio de 2012

Muriel


Há um bom tempo, conheci a poesia deste poeta que hoje aqui apresento. E recordo-me de sobremodo uma poesia que me chamou atenção. A beleza destes versos já me inspirou a desbravar outros rumos para a experiência da escrita poética. Talvez, quem leia estranhe o ritmo do poema, conduzido pela curiosa ausência de vírgulas.

Para quem não conhece, há uma corrente de poetas que aboliu o uso das nossas tão familiares vírgulas na escrita do poema. Logicamente, há uma ou algumas razões para isso. Uma das explicações, no entanto, remonta ao antigo grego, que não conhecia ainda sinais de pontuação. Pelo que me consta, a acentuação no grego antigo era o modo pelo qual se separavam as palavras, razão pela qual era tida por uma língua muito sonora, sem quebras, pausas constantes proporcionadas pelos sinais de pontuação. O ponto final, por exemplo, só veio a ser introduzido na língua durante o Império Bizantino, e com a simples função de separar visualmente os vocábulos. Portanto, sob a perspectiva de alguns poetas, a ausência das vírgulas possibilitava a fluidez do poema, uma leitura mais limpa, por assim dizer. Além do que, daí se pode constituir uma certa liberdade ao exprimir-se, porquanto fosse uma libertação da rispidez da gramática, certas vezes, um tanto quanto violenta no trato culto do dia-a-dia. Nosso querido Manuel Bandeira chegou a fazer uso desta técnica com outra finalidade bem curiosa... mas emendemos um ponto final por aqui, antes que eu deixe de chamar a isto de introdução.

Fica para a leitura, Muriel, do poeta português Ruy Belo.


MURIEL

Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas a dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
sem que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido

Ruy Belo