Atos

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terça-feira, 14 de junho de 2011

Final da tarde, saio do trabalho, a cabeça dando voltas. Pensando no que queria ter dito; lembrando a voz opaca, de alguém que nunca ouvi; parece que a voz não me reconhecia... acho que já morei com ela. Eu não sei quando.

Tudo perde um pouco o peso. Não sei onde estou, errei o caminho que pego há dois meses. Passo direto. Entro numa favela, algo me diz que estou perto da aerolândia. Há poucos dias não sabia existir tal bairro. Digiro uma ideia por vez, dirijo-me tonto pelas ruas. Tem uma náusea que me remói, e eu... remoído fico.

Geralmente, canto algo. Hoje não tenho repertório. Sugiro o silêncio para que me embale, e saio pelas ruas a procurar meu caminho. Encontro qualquer coisa familiar e me lanço à procura, até que chego à avenida conhecida; verifico que dei uma volta. E com mais outra, mando minha cabeça aprumar o rumo. Minha casa é quilômetros daqui. Sei que perdi minha hora, mas meia hora mais, que diferença faz? Não tenho pressa...

Para quê a teria?

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Que Pessoa és tu?

Como singela homenagem, deixo-lhes hoje alguns versos do mestre maior de nossa poesia. Assim, brindemos à memória do que seria seus 123 anos de nascimento. Os versos já são por demais conhecidos, mas não custa relembrá-los. Enfim, adiantemos, em outro momento, quando mais oportuno, adiciono outras palavras que o tempo agora não permite expressar.
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Poema em linha reta

Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)

[538]

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


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Os versos acima, escritos com o heterônimo de Álvaro de Campos, foram extraídos do livro "Fernando Pessoa - Obra Poética", Cia. José Aguilar Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 418.